Flamengo, CONMEBOL Libertadores 2019 e camisa amarela. É inevitável não me emocionar quando falam sobre essas três coisas que ficaram marcantes na minha vida. E é por isso que deixo essa carta para a nação rubro-negra.

Não dá para esquecer tudo que vivi desde que vesti essa camisa pela primeira vez. O dia 23 de novembro de 2019 é marcante para mais de 40 milhões de torcedores. E para mim não é diferente.

São cinco anos desde a conquista da Libertadores de Lima e parece que foi ontem. Mas para falar do histórico dia 23 de novembro, eu preciso voltar para 2017, 2018… anos marcados por alguns tropeços em campo, decepções e até uma possível saída. Sim, eu quase deixei o Flamengo. Mas eu sabia que a minha história não poderia acabar daquela forma.

É aí que entra o ano de 2019. Sim, se a tal ‘mudança de patamar’ que o querido Bruno Henrique criou passou a fazer sentido a partir de 23 de novembro de 2019, para mim a mudança de patamar no lado pessoal com o Flamengo se iniciou no comecinho de 2019. Aquele novo ciclo vinha para cicatrizar algumas feridas deixadas pelos anos anteriores. E o tempo é sempre o melhor remédio.

Desde que decidi ficar, eu lembrava do propósito: ser campeão de algo grande no Flamengo. No final, eu vou voltar com essa frase: “Muitos passaram, muitos tentam, mas poucos entram para história”. Eu sabia que seria preciso passar por muita coisa para que lá na frente essa frase fizesse sentido na minha trajetória pelo Flamengo. E eu já havia passado. Sofrido. Lutado. A recompensa viria.

Sou muito grato ao técnico Abel Braga, peça fundamental para a minha permanência no clube, assim como o vice-presidente de futebol Marcos Braz. Com Abel, iniciamos a Libertadores em uma situação inédita para mim. Jogar em Oruro contra o San José. Nunca havia atuado em um lugar com uma altitude de mais de 3600 metros acima do nível do mar. Tudo mudava. A velocidade do jogo, do nosso time, da bola. Muda a respiração, vem a falta de ar. Lembro que pude fazer algumas defesas importantes até a hora que o Bruno Henrique achou o Gabigol, que fez 1 a 0. Vitória! Que vitória contra o San José. Para dar moral. E deu.

Vencemos a LDU, perdemos para o Peñarol e vencemos o San José de novo nos três jogos seguintes. Por conta do tropeço em casa, era necessário um ponto em duas rodadas. Perdemos para a LDU e fomos enfrentar o Peñarol em Montevidéu precisando de um ponto para se classificar. Depois de muito sufoco, esse ponto veio. E a vaga também.

Passei muito tempo ouvindo que o Flamengo não tinha tradição em Libertadores. Nas oitavas de final, tão traumáticas como em anos anteriores, voltaríamos a sofrer. Mas não só com resultado. Com uma grave lesão de um amigo. A derrota por 2 a 0 para o Emelec foi o de menos. Vimos ali o nosso capitão, líder e amigo Diego Ribas quebrar a perna. Foi duro. Um duro golpe.

Os 2 a 0 da derrota na bagagem pesavam? Sim. Mas sabíamos que iríamos reverter. Focamos no Brasileirão, vencemos o Botafogo num domingo para jogarmos na quarta contra o Emelec no Maracanã. E foi aí que viramos a chave.

Não se falava em outra coisa diferente de vitória, classificação. A preparação foi especial. O clima positivo trouxe confiança. Eu senti isso desde que entrei para aquecer. Mais uma vez foi sofrido? Sim. Abrimos 2 a 0 e quando achamos que iríamos abrir mais, o jogo parou. Não andou mais. E foi assim até os pênaltis.

Eu sempre tive fama de pegador de pênaltis. Na Espanha, defendi cobranças de Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, mas os jogos não eram eliminatórios. Desta vez era diferente. O goleiro precisa aparecer nessas horas. Era o meu momento no Flamengo.

Naquele momento de tensão, lembro que o Jorge Jesus veio me explicar onde cada jogador batia. Eu falei para ele: “deixa eu concentrar”. Ele entendeu. Respeitou. As duas primeiras cobranças eu não consegui pegar. Do nosso lado, Arrascaeta e Bruno Henrique fizeram. Era a vez do Renê. Só de lembrar da cobrança dele, eu fico nervoso agora. E sei que você lendo essa carta também fica. Era a metade da disputa, 2 a 2 no placar. Um erro poderia mudar o nosso rumo. Mas eu confiava no Renê. Meus companheiros sabiam da qualidade dele. E o Renê foi lentamente para a bola até a hora do chute. E fez a melhor cobrança da disputa. Eu brinco que ele está cag*** até hoje. Ele veio em minha direção e disse que eu iria pegar o próximo.

Quem vai para a bola é Dixon Arroyo. Muitos podem não lembrar, mas era o mesmo jogador que machucou o Diego Ribas na ida. Por ironia do destino, eu pego o pênalti dele. Eu costumo não comemorar cobranças antes do término. Continuei concentrado, mas a minha parte eu fiz. Um eu iria pegar.

Quando o Rafinha foi para a bola e fez o dele, abrindo 4 a 2, a torcida cantava que eu era o melhor goleiro do Brasil. Eu procuro não me desconcentrar com isso. Se o Emelec perdesse, a gente iria avançar. Quando o Queiroz acerta a trave, aí sim eu comemoro. Eu e mais de 40 milhões de pessoas no mundo.

Eu digo: se fosse em outros anos, talvez a gente não tivesse preparado para avançar naquele momento, com aquela tensão. Mas aquele grupo em 2019 estava muito preparado. E ali, diante da nossa torcida, cada um daquele elenco começava a mudar a sua história no clube.

Quando enfrentamos primeiro Inter e depois Grêmio, veio aquilo que sempre ouvi desde que cheguei ao clube: ‘O Flamengo não era copeiro’. Eliminamos o Inter jogando melhor dentro e fora de casa. Sofremos no fim, mas o nosso time conseguiu esfriar uma pressão do adversário e garantimos a vaga. Uma semifinal de novo após tanto tempo. Algo inédito para uma geração de torcedores.

Era o Grêmio pela frente. Campeão em 2017. Semifinalista em 2018. Provocações de cada lado entre Renato Gaúcho e Jorge Jesus. Quem tinha o melhor futebol do país? E o duelo mostrou que era a gente.

O Renato é um grande cara, querido por todos quando veio trabalhar com a gente dois anos depois. Mas ele mexeu com alguém que estava quieto, no caso o Jorge Jesus. A gente estava muito motivado e preparado para aquele duelo. Sabíamos tudo o que o Grêmio iria fazer. O 1 a 1 na ida não condiz com o nosso desempenho. Tivemos 3 gols anulados que em tempos sem VAR não seriam anulados. Digo que foi o melhor jogo daquela geração.

Só que um time que busca ser campeão tem que ter um goleiro que faça a diferença no momento delicado. E foi o que fiz quando fiquei cara a cara com Everton Cebolinha. Uma defesa magistral em um chute forte, cruzado e quando ainda estava 0 a 0 no placar. Eu considero aquela defesa como a defesa da Libertadores.

Fizemos 1 a 0 com o Bruno Henrique, levamos o empate e saímos de lá com uma expectativa alta pela volta. E o 5 a 0 no Maracanã coroou um time que ali praticava o melhor futebol do Brasil. Era uma expectativa gigantesca de tudo o que uma final de Libertadores iria proporcionar para todos nós.

E vimos isso no AeroFla. Uma loucura. Fomos carregados do Ninho ao Galeão pela torcida do Flamengo. Eu nunca tinha vivido aquilo em lugar algum do mundo.

Enfim chega a final, o dia 23 de novembro que falamos lá em cima. Sofremos bastante com um River Plate no primeiro tempo. Nosso jogo não encaixava. Levamos um gol bobo. Mas em nenhum momento nos desconcentramos daquilo que trabalhamos para executar em campo.

O tempo passava. A tensão aumentava. O time mudava as peças, mas quem continuava mantinha o padrão de organização. Esse era nosso diferencial. E foi dessa forma que chegamos ao gol de empate. Não sabíamos que faltava tão pouco tempo quando o Diego pressionou, o Arrasca deu o carrinho e enxergou o Bruno. Lá do gol, eu falei: ‘Bruno, vá para o gol’. Eram cinco nossos contra três deles. Mas o Bruno para. E faz uma magia até a bola chegar no Arrasca, que dá um carrinho e encontra o Gabi. 1 a 1. Que alívio. Que emoção.

Eu lembro que o Everton Ribeiro veio até a mim e disse ‘vamos segurar e ganhar na prorrogação. Eles estão mortos’. No calor do jogo, eu falei ‘tudo bem. Vamos administrar’. Eu toco a bola para o Rafinha, que joga no Rodrigo Caio, que volta no Rafinha. E a bola chega ao Diego. O Diego vai e manda para frente. Um lançamento para o Gabigol, que ali brigou com o Pinola. Gol.

Se o primeiro gol foi uma explosão, o segundo foi diferente. Não teve o mesmo ambiente. Alguns ainda comemoravam o primeiro gol. Mas a maioria chorava. Um grito abafado pelas lágrimas. Era um sentimento que só quem viu a geração do Zico pode falar. 38 anos depois. No mesmo dia que os ídolos imortais ganharam a primeira Libertadores, quis o destino que a gente tivesse a honra de acabar com um jejum de 38 anos na mesma data.

Quando acaba o jogo, eu via que ali minha história e dos meus amigos iria mudar.

Na hora de levantar a taça, ficou naquela: quem vai levantar? Ribas, Ribeiro e eu fomos capitães em algum determinado momento daquele ano. E aquela cena de nós três levantando a taça juntos marcou aquela geração. Foi um momento perfeito para consagrar a união daquele grupo que virou uma família.

Ah, e lembra daquela fase lá do início, eu volto para falar de novo. Agora ela fez sentido. “Muitos passaram, muitos tentam, mas poucos entram para história”. Depois disso, ganhamos muitas outras vezes. Mas não como em 2019. É algo que não vai se repetir. Não dá pra esquecer. E valeu muito a pena. Obrigado, Flamengo.

*em depoimento a Vinicius Ribeiro