Graças a um nível de insistência que só mesmo alguém muito convicto poderia apresentar, o que era para ser uma brincadeira acabou virando um clássico da música. Axl Rose ouviu os companheiros de banda tocando de maneira despretensiosa nos intervalos das sessões de gravação, gostou, escreveu letra para aquilo, transformou o improviso em canção e fez campanha para que ela entrasse no álbum de estreia do Guns N’ Roses – o Appetite for Destruction, de 1987.

Não faltou gente para tentar demovê-lo da ideia, mas ele bateu o pé. Argumentou que existia ali algo especial, com potencial para alcançar uma parcela maior de pessoas. O tempo o deu razão. Mesmo quase quatro décadas depois de lançada, “Sweet Child O’Mine” continua aparecendo nas caixas de som e nos fones de ouvido mundo afora, com aquele riff de guitarra tão icônico que a faz ser identificada tão logo começa a tocar.

O que teria acontecido se Axl Rose não tivesse confiado tanto na própria intuição? Ou se David Bowie ficasse com medo demais para ousar com “Space Oddity”? Ou se Paul McCartney desse ouvidos a gente da gravadora que torcia o nariz para “Hey Jude” por ser longa demais? Ou se Freddie Mercury não acreditasse tanto que “Bohemian Rhapsody” poderia conquistar o mundo e um lugar na história da arte justamente por ser tão diferente? Quantas grandes obras hoje não existiriam?

De tempos em tempos, aparece um visionário para fazer algo totalmente diferente do que o resto do mundo faria. Que constrói uma grande história e vê resultados estrondosos ao bancar suas convicções e ir contra o senso comum. Simplesmente porque viu algo acontecendo antes de qualquer outro cidadão.

Para os torcedores do Dallas Mavericks na NBA, tudo o que resta neste momento é a esperança de que Nico Harrison, general manager da equipe, seja uma dessas pessoas capazes de enxergar além. Porque se ele não for mesmo um visionário, as consequências de uma convicção tão grande vão causar estragos dolorosos.

A história da última semana

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2:13
Shams Charania traz bastidores de troca insana entre Doncic e Anthony Davis e diz: ‘Não tinham ideia que ia acontecer’

O Los Angeles Lakers recebe Luka Doncic, Maxi Kleber e Markieff Morris; O Dallas Mavericks recebe Anthony Davis, Max Christie e a escolha de primeira rodada dos Lakers de 2029

Já era madrugada de sábado para domingo quando Shams Charania, jornalista da ESPN dos Estados Unidos, anunciou em sua conta no Twitter que Dallas Mavericks e Los Angeles Lakers tinham acertado uma troca envolvendo Luka Doncic e Anthony Davis. Foi tão inesperado e parecia tão absurdo que não faltou gente para levantar a possibilidade de o perfil ter sido hackeado. Poucos minutos mais tarde, Charania apareceu para dar mais detalhes do negócio, sem antes avisar: “Sim, isso é real”.

E aí ele contou que Maxi Kleber e Markieff Morris estavam indo junto de Doncic para os Lakers. Que os Mavericks, além de Davis, receberam Max Christie e uma escolha de primeira rodada no Draft de 2029. E que a transação incluía ainda o Utah Jazz, para onde iriam Jalen Hood-Schifino e duas escolhas de segunda rodada.

No primeiro comentário público que fez sobre a troca, Harrison disse acreditar que “defesas ganham campeonatos”, que a aquisição de um jogador com as qualificações de Davis colocaria o time em melhor condição de chegar a um título e que o elenco foi constrúido para “vencer agora e no futuro”. Na medida que mais informações acerca dessa história foram surgindo, mais corajoso o executivo dos Mavericks pareceu.

De acordo com o que apuraram Tim MacMahon e Dave McMenamin, também jornalistas da ESPN dos EUA, Doncic ganhou muito peso no começo da atual temporada. O time chegou até a estender o tempo de recuperação dele de uma lesão que ele teve pulso no mês de novembro para que assim a forma física pudesse ser aprimorada. Esse procedimento já tinha ocorrido uns anos atrás, e aí cresceu em Harrison um sentimento de frustração com a disciplina do esloveno no que diz respeito a dieta e condicionamento.

Diante desses acontecimentos, não chega a ser absurdo considerar que uma luz amarela se acendeu em torno de Doncic. Também não dá para desprezar o fato de que o astro estaria elegível para receber uma extensão de contrato por cinco anos no valor de US$ 345 milhões assim que a atual temporada acabar. É muita grana por bastante tempo. Na posição de alguém pago para tomar decisões para o melhor interesse dos Mavericks, Harrison entendeu que o melhor a se fazer era mandá-lo para Los Angeles e receber um jogador como Davis.

Dá para entender o que motivou Harrison? Sem dúvida. Mas daí a parecer uma boa sacada são outros quinhentos. Apesar de todas essas bandeiras amarelas, Doncic liderou os Mavericks a uma final da NBA em junho passado. Eles perderam com alguma facilidade para o Boston Celtics na decisão, é verdade, mas até aí pode-se dizer sem medo que qualquer outro oponente teria tido o mesmo desfecho naquele confronto. No caminho para chegar lá, deixou todos os outros concorrentes do Oeste para trás e conquistou o título de uma conferência altamente competitiva. Tudo isso enquanto não só enfileirou grandes atuações como facilitou demais a vida de certos companheiros. Os pivôs Dereck Lively e Daniel Gafford, por exemplo, devem ser extremamente gratos pelas situações em que eram colocados para colocar a bola na cesta.

Davis é ótimo e realmente está à altura dos elogios defensivos que Harrison teceu, mas Doncic é um talento especial – além de ser bem mais jovem. Salvo raras exceções hoje na liga, o time que tem a oportunidade de contar com seus serviços não pode desperdiçá-la. Simples assim. Foi o que os Lakers fizeram. Porque até existem mesmo algumas questões sobre a distribuição de bola em um sistema ofensivo que já conta com LeBron James e Austin Reaves, mas esse tipo de coisa é muito pequeno perto do nível técnico que um craque de 25 anos mostra desde que chegou à NBA. Não se trata de potencial. É realidade mesmo.

Os Lakers queriam um pivô. Inclusive chega a ser irônico que Davis tenha dado entrevista há alguns dias pedindo para que contratassem um homem de garrafão a mais para compor o elenco. Não foi isso o que a direção da equipe fez. Mas, de novo, quem pode condenar Rob Pelinka e companhia? Imagina se eles ouvissem a proposta dos Mavericks e respondessem: “Muito obrigado, Luka é realmente um craque mas, vejam bem, o que a gente precisa mesmo é de um pivô para ser terceira ou quarta opção de ataque”? Seria um absurdo completo. Quando uma chance dessa aparece, errado é não aproveitar. Tem mais é que pegar um craque como esse e resolver o resto depois.

O negócio parece ainda mais sedutor para os Lakers se for considerado o futuro a médio e longo prazo. Por mais que Davis continuasse por lá, os dias pós-aposentadoria de LeBron James pareciam uma incógnita. Essa dúvida agora não existe mais. Doncic é um reforço e tanto para os últimos capítulos da carreira do camisa 23 e poderá depois liderar qualquer projeto. O torcedor em Los Angeles sabe que terá por muito anos um jogador em que se pode montar uma equipe ao redor dele.

Doncic chegou a declarar que imaginou que passaria a carreira inteira em Dallas. Era o que a equipe planejava lá em 2018, ano em que ele chegou à NBA. Harrison achou melhor mudar esse roteiro. Sua convicção diz que entregar as chaves do time nas mãos de Kyrie Irving, deixar Davis jogando mais tempo com outro pivô, seja Gafford ou Lively, e complementar o grosso da rotação com Klay Thompson, PJ Washington, Quentin Grimes e Naji Marshall aumentam as chances de os Mavericks irem ainda mais longe do que foram no ano passado.

De falta de coragem ninguém pode acusá-lo. Nesse quesito, pelo menos, Harrison já se assemelha a outros visionários que podem ser lembrados em diversas esferas da sociedade. Chega a ser notável, mas também não se pode esquecer que o que não falta no mundo é gente convicta demais que faz bobagem e continua abraçada ao erro para não dar o braço a torcer.

Grande sábio ou teimoso que fez bobagem? O desempenho dos Mavericks a curto prazo e, sobretudo, a trajetória de Doncic em Los Angeles vão decretar o que Harrison será nessa história.

O que isso lembra

Ao mesmo tempo em que muita gente tentava entender o que estava acontecendo e as motivações por trás da transação, o debate nas mídias sociais em torno da notícia levantou uma questão interessante: existiu algum outro episódio parecido com esse, tanto pela grandeza das estrelas envolvidas quanto pelo grau de surpresa?

O leitor que chegou até aqui e não conseguiu pensar em nenhum exemplo de imediato não precisa se sentir sozinho. Muitos jornalistas veteranos de cobertura admitiram que nenhuma outra bomba que conseguiam pensar poderia se comparar a essa. Até porque, não custa lembrar mais uma vez: a reação de grande parte das pessoas, incluindo até mesmo alguns outros jogadores da NBA, foi duvidar da veracidade da notícia.

Shaquille O’Neal saindo de Los Angeles para Miami em 2004 foi um grande negócio, mas era mais ou menos esperado que ele seria trocado porque, àquela altura, estava claro que não havia mais clima para ele e Kobe Bryant jogarem juntos. Shai Gilgeous-Alexander já era muito bom em 2019, mas ainda não era o craque de hoje em dia quando foi envolvido na transação que levou Paul George ao LA Clippers.

Teve a ida de Gary Payton para o Milwaukee Bucks em 2003 em troca de Ray Allen. Como o contrato estava no fim e o Seattle Supersonics temia perdê-lo de graça em alguns meses como “free agent”, Payton ter sido negociado não chegou a ser uma grande surpresa. Mas Allen, sim.

Pela coincidência das datas, muita gente lembrou do que os Lakers fizeram em outro 1º de fevereiro, mas no ano de 2008. Foi nesta data que Pau Gasol chegou do Memphis Grizzlies para dar a Kobe Bryant um tão desejado companheiro que fosse “all-star”. Para isso, foram enviados Kwame Brown, Javaris Crittenton, Aaron McKie e os direitos sobre um atleta que havia sido selecionado na segunda rodada do Draft do ano anterior, mas que ainda não fazia parte da NBA.

Parecia muito pouco na época. Gregg Popovich, que já era técnico do San Antonio Spurs, ficou tão irritado que chegou a declarar que a NBA deveria criar um comitê para avaliar trocas e impedir que acordos desiguais fossem concretizados. Só que esse jogador que ainda estava por chegar aos EUA era Marc Gasol, irmão de Pau. Que depois de estrear na NBA, construiu uma bela carreira em Memphis, virou “all-star”, tornou-se ídolo por lá e ainda foi campeão com o Toronto Raptors antes de se aposentar.

No fim das contas, a exemplo de todas as outras citadas anteriormente, não é uma troca que possa servir como um paralelo para o impacto que Lakers e Mavericks causaram no último sábado. Mas pelo menos traz uma ótima lembrança do quanto as percepções sobre uma negociação podem mudar ao longo do tempo.

Abre aspas

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‘Isso é insano’: Kevin Durant está ‘chocado’ com troca entre Luka Doncic e Anthony Davis e diz ser ‘a maior’ que já viu

Lakers e Mavs fecham troca bombástica na madrugada de sábado (01) para domingo (02)

“Isso é louco. Nunca imaginei que Luka Doncic seria trocado com a idade que tem. E no meio da temporada. A NBA é selvagem. Se isso aconteceu com ele, é porque todo mundo está sujeito a passar por isso também.”

“Os jogadores são julgados sob um certo padrão de lealdade e comprometimento a um projeto, mas os times não são cobrados da mesma maneira pelas pessoas que estão do lado de fora, pela imprensa e pelos fãs”

Ambas as declarações foram dadas por Kevin Durant, na entrevista que deu no vestiário do Phoenix Suns alguns minutos após o jogo contra o Portland Trail Blazers, que terminou enquanto o mundo tomava conhecimento de uma das trocas mais bombásticas da história da NBA.

A reflexão sobre essa diferença nos níveis de cobrança de lealdade não surgiu do nada. Durant despertou enorme antipatia por boa parte dos fãs de basquete e foi amplamente criticado quando decidiu sair do Oklahoma City Thunder para se juntar ao Golden State Warriors em 2016. Então toda essa história agora acabou servindo como uma oportunidade para ele pedir para as pessoas pensarem melhor sobre o que esperam e o que cobram dos jogadores da NBA.

Não é nada que vai provocar mudanças radicais de posição. Quem se frustrou em 2016 seguirá achando que tinha motivos para isso. Quanto a isso, sem problemas. O fã de basquete, que se envolve com o campeonato por uns oito meses em um ano, tem todo o direito de não gostar de ver uma super estrela se juntar a um time extremamente forte. Mas dá para sentir apenas dissabor sem condenar o atleta por violação ao código não escrito de lealdade. Há uma distância entre uma coisa e outra que pode ser melhor observada. Nisso, Durant tem razão.

Outra troca

E não é que uma outra troca bombástica apareceu menos de 24 horas depois de Lakers e Mavericks chocarem o mundo? De’Aaron Fox saiu do Sacramento Kings para realizar um desejo que tinha manifestado não havia muito tempo: jogar com Victor Wembanyama no San Antonio Spurs.

A negociação envolveu ainda o Chicago Bulls, que também conseguiu algo que vinha querendo: se livrar do contrato de Zach LaVine. No fim das contas, ficou assim:

  • Spurs recebem – De’Aaron Fox (Kings) e Jordan McLaughlin (Kings)

  • Kings recebem – Zach LaVine (Bulls), Sidy Cissoko (Spurs), três escolhas de primeira rodada, três escolhas de segunda rodada

  • Bulls recebem – Zach Collins (Spurs), Tre Jones (Spurs), Kevin Huerter (Kings) e uma escolha de primeira rodada

Conseguir um jogador do nível de Fox sem precisar abrir mão de Keldon Johnson e Devin Vassell foi uma enorme vitória para os Spurs. Chris Paul ainda está lá, e é inegável que ele tem dado suas contribuições a um time que tem vencido mais do que no ano passado e que ainda sonha com vaga no play-in. Mas também é evidente que está em reta final de carreira e bem longe do armador que foi um dia. Fox é o cara para assumir essa posição nos próximos anos e desenvolver umma dupla perigosíssima com o gigante francês. Dá para imaginar o pesadelo que as defesas adversárias terão para se virar contra eles no “pick and roll”.

Para os Bulls, o que vale é o alívio na folha salarial e a possibilidade de continuar a tocar um processo de reconstrução. LaVine tem um contrato longo e pesado. Trocá-lo era um desejo antigo de um time que hoje passa longe de competir nas cabeças do Leste, mas ninguém se interessava em recebê-lo há alguns meses. As boas atuações nas últimas semanas e a impressão de que está recuperado de lesões o fizeram mudar esse cenário. Passou a ser um tipo de jogador que uma equipe que precisasse fazer algum tipo de correção de rota na temporada pudesse apostar.

É o caso dos Kings. O ressurgimento do time na briga por playoffs do Oeste depois de um início fraco de temporada e da demissão do técnico Mike Brown já foi assunto por aqui. A questão é que algumas dessas vitórias marcantes dos tempos recentes aconteceu sem Fox em quadra, e muitas vezes ficou mesmo a impressão de que ele não era tão indispensável assim em um sistema ofensivo que já contava com Domantas Sabonis e DeMar DeRozan. LaVine não é o exemplo mais claro do mundo de jogador que se move sem a bola nas mãos, mas deu uma evoluída nesse sentido e é um ótimo arremessador de longa distância. Pode, pelo menos, ajudar abrindo espaços na quadra para os companheiros.

Uma estatística

Pela primeira vez na história da NBA, três jogadores que anotaram pelo menos 10 mil pontos com uma determinada equipe foram trocados por seus respectivos times no meio de uma temporada.

Luka Doncic anotou 12.089 pontos pelo Dallas Mavericks. Zach LaVine somou 10.056 pontos durante a trajetória com o Chicago Bulls. E De’Aaron Fox fez 11.064 pelo Sacramento Kings.

O que vai ter na tela da ESPN

Quarta-feira (5):

  • San Antonio Spurs x Atlanta Hawks – 21h
    Por que assistir: a essa altura dos acontecimentos, qualquer oportunidade de ver Victor Wembanyama vale a pena. Mas existe a possibilidade de De’Aaron Fox já estar disponível para esse jogo, o que só aumenta o grau de expectativa em torno dele.

Sexta-feira (7):

  • Philadelphia 76ers x Detroit Pistons – 21h30
    Por que assistir: boa oportunidade de ver um pouco mais de Cade Cunningham, que tem jogado muitíssimo bem e foi chamado para o All-Star Game com toda a justiça do mundo.

  • Utah Jazz x Phoenix Suns – 23h59
    Por que assistir: ainda seguindo a linha de prestar mais atenção em bons jogadores em times que andam meio escondidos, vale ficar de olho Walker Kessler. A má campanha do Jazz o deixa longe dos holofotes, mas a temporada dele até aqui é muito boa, com duplo-duplo de média. Mas é importante registrar o alerta: existe o risco de ele ser trocado no meio da semana e não estar mais à disposição quando esse jogo acontecer.

Sábado (8):

  • Boston Celtics x New York Knicks – 22h30
    Por que assistir: no jogo de estreia da temporada, os Celtics atropelaram e mostraram que os Knicks ainda tinham um longo caminho a percorrer para amadurecer o entrosamento de tanta peça nova. Muita água passou por baixo da ponte desde então. Quem parecia dominante andou tropeçando, quem precisava melhorar já deu amostrar bem animadoras ao longo da temporada. Tem tudo para ser um confronto interessante entre dois fortes candidatos ao título do Leste.

Domingo (9):

  • Philadelphia 76ers x Milwaukee Bucks – 16h
    Por que assistir: vale como um aperitivo para quem estiver se preparando para acompanhar o Superbowl algumas horas mais tarde.