O Brasil terá pela frente, nesta quarta-feira (5), às 20h30 (de Brasília), um time que viajou mais de 9 mil quilômetros para estar em quadra na Copa Intercontinental de futsal. Jogadores da Groelândia trocaram os campos cobertos de neve de Nuuk, capital do território, pela cidade brasileira de São José dos Pinhais, próximo a Curitiba, no Paraná, e esperam que sua paixão pelo jogo remova, ao menos por um curto período, a distração da política e aumente as esperanças de partidas importantes mais perto de casa.

Desde 2024, a Associação de Futebol da Groenlândia (KAK) tem trabalhado nos bastidores para garantir filiação à Concacaf (Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe). A campanha deveria ter tido um momento crucial, talvez decisivo, nesta semana, com figuras importantes da KAK convidadas para a sede da Concacaf em Miami para discutir as perspectivas da Groenlândia de se juntar às 41 associações membros da confederação.

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Depois que o presidente Donald Trump sugeriu que os EUA poderiam tentar adquirir o território autônomo dinamarquês, as negociações entre a Groenlândia e a Concacaf (a confederação que conta com os EUA, o México e o Canadá, anfitriões da próxima Copa do Mundo) foram adiadas. A retórica inesperada do presidente Trump se tornou uma distração tanto para a KAK, quanto para a Concacaf.

“As pessoas estão perguntando se é o Trump que está nos convidando para irmos aos Estados Unidos”, disse Kenneth Kleist, executivo-chefe da KAK, à ESPN. “Portanto, não, vamos nos reunir (com a Concacaf) mais tarde. Em vez disso, vamos nos reunir em Londres, talvez daqui a um mês ou mais, sem que eu me aprofunde mais do que isso no assunto. Isso se tornou um pouco político, como você pode imaginar.”

A Concacaf se recusou a comentar a candidatura da Groenlândia quando contatada pela ESPN.

A Groenlândia se tornou uma questão política no pior momento possível para o KAK. Um território com uma população de cerca de 56.000 habitantes quer ter uma casa para seu time de futebol. A participação na Copa Intercontinental no Brasil – os jogadores da Groenlândia se mantêm em forma jogando futsal por causa do clima invernal prolongado – é um grande momento para a Groenlândia, mas o que eles realmente querem é um futebol competitivo, dentro e fora de casa, com a chance, mesmo que pequena, de sonhar em jogar uma Copa do Mundo.

“Queremos poder esperar ansiosamente pelos jogos, partidas competitivas, nas eliminatórias da Copa do Mundo”, disse o capitão da equipe, Patrick Frederiksen. “É por isso que queremos entrar para a Concacaf.”

Como um território autônomo do Reino da Dinamarca, a Groenlândia é tecnicamente parte da Europa. Embora a Dinamarca tenha lhe concedido o governo local em 1979, os habitantes da Groenlândia são cidadãos plenos da Dinamarca, a coroa dinamarquesa é a moeda oficial e o dinamarquês é falado juntamente com o groenlandês. Mas, ao contrário das Ilhas Faroé, que também são um território autônomo da Dinamarca com governo local próprio desde 1948, a associação de futebol da Groenlândia não tem uma sede.

Uma cláusula nos regulamentos da Uefa estipula que as novas federações afiliadas devem ser reconhecidas como um país soberano pelas Nações Unidas, o que significa que a Groenlândia não pode se juntar à confederação europeia. A Uefa introduziu a regra em 2007, depois que as Ilhas Faroé e Gibraltar se tornaram membros. Não há tal exigência na Concacaf. Isso pode mudar, com uma emenda proposta no Congresso da Fifa em Bangcoc, em maio passado, que qualquer novo membro deve ser reconhecido como um país independente pela ONU, mas a porta da Concacaf ainda está entreaberta para a Groenlândia.

“Quando a Concacaf respondeu à nossa solicitação e nos convidou para conversar, foi como um presente de Natal para nós”, disse o técnico da Groenlândia, Morten Rutkjaer, à ESPN. “É uma coisa totalmente maluca que agora todos queiram conversar conosco e todos tenham dito: ‘Ah, é sobre o Trump’. Não, não. Trabalhamos nisso há muitos anos, desde que comecei em 2019.Tudo o que sei é que queremos fazer parte da associação em algum lugar e a melhor coisa para a Groenlândia é fazer parte da Concacaf, então os jogadores têm algo para sonhar e treinar.”


“É realmente impossível praticar futebol”

Karsten Moller Andersen acaba de cair, segurando o joelho. Os membros da seleção da Groenlândia estão treinando na arena esportiva Inussivik, em Nuuk, e Andersen está mal. Um de seus colegas de equipe sai correndo para pedir ajuda aos funcionários da arena e volta com um saco plástico transparente cheio de neve. Andersen é levado para um banco, e a neve é colocada sobre seu joelho.

Essa é uma imagem que resume a singularidade da Groenlândia. Os jogadores estão treinando em uma quadra fechada porque a superfície externa está debaixo de um metro e meio de neve. Quem precisa de gelo quando se tem um suprimento infinito de neve para fazer o mesmo trabalho?

Os jogadores da Groenlândia estão treinando para o torneio de futsal no Brasil, onde enfrentarão os anfitriões, o Afeganistão e o Irã. Eles jogam futsal durante oito meses do ano devido às condições climáticas adversas – a temperatura pode chegar até a -30°C em alguns lugares no inverno. E eles são bons: rápidos, com técnica impressionante e agressivos. Andersen, torcedor do Manchester United desde a primeira passagem de Cristiano Ronaldo pelo Old Trafford, é o melhor jogador da equipe, portanto sua lesão é uma preocupação antes da viagem ao Brasil.

“Meu joelho está melhorando”, disse ele à ESPN uma semana depois. “Estou fazendo tratamento a laser com meu fisioterapeuta, então está tudo certo para o Brasil.”

Andersen trabalha em um orfanato em Nuuk, assim como o capitão da equipe, Patrick Frederiksen. Outros membros da equipe trabalham em bancos, na pesca e para o governo da Groenlândia. O meio-campista Soren Kreutzmann é cabeleireiro. Outros membros da equipe jogam na segunda divisão da Dinamarca, nas Ilhas Faroe ou na Islândia.

“Eles são jogadores de futebol muito bons no momento”, disse o técnico Rutkjaer, que mora na Dinamarca. “E eles só vão melhorar quando tivermos a competição para jogar. É um país totalmente louco por futebol. Todos jogam futebol em todos os lugares. As crianças estão jogando no gelo, em campos de futebol cobertos e abertos e falam sobre futebol a cada hora que podem.”

Para refletir o ponto de vista de Rutkjaer, enquanto o treinamento está sendo realizado em Inussivik, dois adolescentes assistem ao jogo entre Manchester City e Real Madrid na Champions League pelo celular. Um deles é torcedor do Arsenal e o outro, do Liverpool. Quando Jude Bellingham faz o gol da vitória merengue por 3 a 2 no final do jogo, o grupo que cercou os dois adolescentes se alegra e ri.

Mas é o isolamento da Groenlândia que torna o desenvolvimento do futebol tão difícil. Há apenas 85 quilômetros de estrada na ilha, que mede 2,1 milhões de quilômetros quadrados, e apenas dois voos internacionais partindo de Nuuk – para Reykjavik, na Islândia, e para a capital dinamarquesa, Copenhague -, embora a United Airlines vá iniciar um serviço semanal de Newark para Nuuk. Os cancelamentos de voos são uma ocorrência regular devido aos ventos fortes e ao gelo na pista. Também não é incomum que os voos de Reykjavik e Copenhague tenham que voltar ao seu destino sem pousar em Nuuk devido às rápidas mudanças nas condições climáticas.

“Não planejamos com muita antecedência na Groenlândia”, disse Frederiksen. “Vamos dia a dia porque o clima pode mudar tudo.”

Icebergs flutuam ao redor da baía em Nuuk, montes de neve podem cobrir prédios de um andar e o clima significa que, durante 8 a 10 meses do ano, os treinos de futebol devem ser realizados em ambientes fechados. “Estamos cobertos de neve”, disse Frederiksen. “É realmente impossível praticar futebol porque há muita neve. É muito profunda e a bola congela.”

O Campeonato de Futebol da Groenlândia dura apenas uma semana em agosto, quando o tempo coopera. O B-67 Nuuk conquistou seu 15º título nacional ao vencer o torneio de 15 jogos durante uma semana no ano passado, com três equipes desistindo devido a dificuldades de transporte.

É evidente que há talento e ambição entre os jogadores da Groenlândia e os dirigentes da KAK. Eles jogaram amistosos masculinos contra Kosovo e Turcomenistão nos últimos anos, e a Groenlândia compete nos Island Games, um torneio a cada dois anos que envolve países como Bermudas, Ilhas Cayman, Santa Helena e várias pequenas ilhas europeias. Eles também fizeram planos para um amistoso contra Tuvalu, a ilha polinésia no sul do Pacífico, no final deste ano, para aumentar a conscientização sobre o desastre ambiental que o país enfrenta.

“Espera-se que Tuvalu seja uma das primeiras ilhas a ser encoberta de água, e a Groenlândia é onde a calota de gelo está derretendo”, disse Rutkjaer. “Portanto, a ideia é um jogo nacional entre as duas seleções para aumentar a publicidade sobre a situação.”

Mas, embora os torneios de futsal no Brasil e os jogos amistosos para a equipe masculina ajudem a dar a Rutkjaer e a seus jogadores um senso de propósito, eles não são nada comparados ao nível de entusiasmo que a Concacaf traria para homens e mulheres.

Lykke Eldevig, de 18 anos, é uma das estrelas do futebol feminino na Groenlândia. Seu pai, Jon, jogou no B-67, mas ela sonha em atuar em outros lugares. “Sempre foi um sonho [jogar profissionalmente], mas não sei se é possível”, disse ela à ESPN.

“Treino quatro vezes por semana, três vezes com esta equipe e uma vez com a equipe regional. Alguns jovens tiveram que se mudar para escolas na Dinamarca para encontrar equipes lá e, com sorte, entrar no cenário profissional, mas não há muitos aqui porque não temos muitas oportunidades.”

Enquanto Lykke fala, Alice, uma das mulheres que treinam com o grupo principal, aparece para dizer que jogou em todos os campeonatos femininos da Groenlândia desde 1988. O Nuuk é o atual campeão, conquistando o 11º título em 2024, o que o deixa a dois títulos do time feminino mais bem-sucedido, o I-69, da cidade de Ilulissat. Ela ainda joga futebol com 50 e poucos anos, mesmo com a chance de uma carreira profissional já não existindo há muito tempo. “Realmente esperamos que a Groenlândia possa entrar na Concacaf”, disse Alice à ESPN. “Isso abriria oportunidades para meninos e meninas da Groenlândia e seria muito especial para nós.”


“Se trata de dar aos jogadores um sonho para viver”

Uma coisa estranha sobre a candidatura à Concacaf: a Groenlândia não tem um estádio que possa sediar jogos de futebol internacionais. O Estádio Nuuk, adjacente à arena Inussivik, tem um campo de grama artificial e está listado como tendo capacidade para 2.000 pessoas, mas um dos lados é uma colina rochosa – coberta de neve durante a visita da ESPN – e o outro dá para a arena. O resto é cercado por casas e apartamentos. Mas o pedido de adesão à Concacaf faz parte de um plano para desenvolver o futebol e as instalações para todos os esportes na Groenlândia e, inadvertidamente, é nesse ponto que o discurso de Trump sobre aquisições pode jogar a favor da Groenlândia.

É necessário investimento para construir uma série de arenas cobertas, que permitiriam à Groenlândia realizar jogos de futebol durante todo o ano. “Há muito trabalho a ser feito”, disse Kleist, CEO da KAK. “Não temos uma infraestrutura real, com cidades não conectadas às estradas e há muitas dificuldades a serem administradas, mas temos que ser positivos porque precisamos fazer algo grande neste país. Há muitas possibilidades para arenas fechadas e estamos conversando com o governo.”

No início do mês, o primeiro-ministro da Groenlândia, Mute Bourup Egede, convocou eleições gerais antecipadas para 11 de março. A questão principal não é o interesse dos EUA no território, mas a possibilidade de reformas e maiores investimentos por parte da Dinamarca, incluindo melhorias e atualizações na infraestrutura, instalações esportivas e assistência médica. Devido à falta de hospitais na Groenlândia, muitos pacientes precisam ser transportados de avião para a Islândia – uma viagem de três horas apenas se as condições climáticas permitirem.

Há também um crescente movimento de independência na Groenlândia, com relatos de um possível referendo após a eleição e uma votação para se separar completamente da Dinamarca. Fontes disseram à ESPN que o interesse de Trump na Groenlândia colocou o governo dinamarquês sob pressão para investir mais em projetos na Groenlândia, para evitar a perspectiva de um referendo de independência.

No entanto, os laços com a Dinamarca são profundos. A fabricante dinamarquesa de roupas esportivas Hummel produziu o novo uniforme de jogo da Groenlândia, com as camisas titular e reserva incorporando padrões tradicionais dos inuítes, enquanto a camisa reserva azul-clara foi especialmente projetada para combinar com a cor dos icebergs ao redor da Groenlândia. Em uma alusão aos problemas sociais da ilha – a Groenlândia tem uma taxa de suicídio seis vezes maior do que a dos países nórdicos, de acordo com um estudo – a Hummel se uniu à UNICEF em uma campanha para ajudar a lidar com questões de saúde mental no território.

A sensação de mudança na Groenlândia é inescapável. Kleist é cauteloso quando se trata de falar sobre política, deixando claro que a KAK respeita o processo da Concacaf e não deseja fazer da sua candidatura algo que não seja uma questão futebolística. Mas o técnico Rutkjaer é claro sobre as ambições da Groenlândia e ao dizer por que a Concacaf é o lar perfeito para os aspirantes a jogadores de futebol do país.

“Minha esperança é que tenhamos um estádio nacional no próximo ano com um campo de futebol e um telhado, para então podermos treinar o ano todo em Nuuk”, disse Rutkjaer. “E é melhor que nos tornemos membros da Concacaf porque nosso nível está muito mais alinhado com o das ilhas do Caribe. Poderíamos jogar a Liga das Nações da Concacaf e as eliminatórias para a Copa do Mundo, na fase preliminar, talvez em um período de 14 dias, então é muito mais fácil para a Groenlândia do que para a Europa. Não se trata de a Groenlândia jogar contra os EUA ou o México, mas sim de ter a chance de jogar competitivamente contra nações de nível semelhante e dar aos jogadores um sonho para viver.”