Há quem fique maluco e saia da casinha quando se fala em questão mental e a importância do psicológico no futebol. Mas em nenhum outro Campeonato Brasileiro da história esse tema foi tão debatido, com razão. O Botafogo, reconhecidamente o melhor time do Brasil em 2024, está perto de conquistar os dois títulos mais importantes de sua história, mas algumas boas vezes recentemente o botafoguense já se sentiu perto de uma conquista ou de uma vitória certa e acabou frustrado.
O drama vivido em 2023 não é jogado pura e simplesmente para baixo do tapete porque um técnico diz que tudo é passado e acabou. Isso continua na retina e na memória dos torcedores em geral, o apelido de pipoqueiro pega fácil aqui no Brasil, e isso chega aos profissionais da bola também, não tem jeito. O glorioso clube da Estrela Solitária não conquista nenhum título de grande expressão desde 1995. Isso tem um enorme peso, quase tanto quanto aquele que os alvinegros cariocas carregaram entre 1968 e 1989. Só o Botafogo, dentre os mais tradicionais clubes do Brasil, não possui os troféus da CONMEBOL Libertadores e da Copa do Brasil (o torneio nacional ficou para algum outro ano). Clube grande na fila sofre sempre muito com pressão, ansiedade, nervosismo, as coisas acabam por vezes escapando pelos dedos muito por uma aura, um estigma, uma sina, uma espécie de maldição ou castigo, algo que é difícil explicar. Alguém já disse certa vez e todos repetem que “há coisas que só acontecem com o Botafogo”, o que pode ser para o bem ou para o mal. E o botafoguense tem a fama de ser o torcedor mais supersticioso do Brasil.
Essa frase histórica e essa característica dos fãs do Botafogo não morrem porque houve transformação do tão tradicional clube carioca em SAF (Sociedade Anônima do Futebol). Essa modernizou o time em vários setores e injetou um investimento considerável em uma equipe que esteve flertando há poucos anos com mais um rebaixamento para a Série B. Mudou o curso de sua história, virou o melhor exemplo de SAF no país, mas algumas marcas só são apagadas (o que é impossível mesmo em alguns casos) ou minimizadas quando vem o título.
O grande algoz do Botafogo em 2023 foi o Palmeiras, de novo o mais ameaçador perseguidor no Brasileiro neste ano. O alviverde, sob o comando de Abel Ferreira, virou o mais resiliente dos times brasileiros, transformou-se em exemplo de força mental, até pelo livro lançado por seu técnico português: “Cabeça Fria, Coração Quente”. O Verdão vende muito caro qualquer derrota e não desiste facilmente dos campeonatos, parece ter algumas vidas extras muitas vezes. A virada de 4 a 3 sobre o Botafogo no Nilton Santos no ano passado foi simbólica para colar rótulos nas testas do vencedor e do perdedor em questão.
A discussão em torno dessa partida épica (ninguém esquecerá dela, aconteça o que acontecer no final de 2024) passou até por arbitragem e manipulação de resultados, isso muito por John Textor, estadunidense que assumiu o controle do Botafogo. A rivalidade, claro, cresceu entre os dois clubes e, por mais que o alvinegro carioca tenha trocado grande parte de seu elenco e sua comissão técnica, ainda traz uma vontade enorme de superar o Palmeiras (o que fez três vezes neste ano contando Libertadores e Brasileiro, não perdeu do rival) e vingar 2023. O gol de Adryelson no Allianz Parque nesta terça-feira (26), o terceiro do Botafogo nos 3 a 1 do Fogão, foi seguido de uma emoção extrema. Claro que o zagueiro trazia nas costas um peso enorme por ter sido expulso naquele 4 a 3 do ano passado. Decretar a vitória alvinegra ali para ele foi dessas coisas mágicas que o destino poucas vezes reserva. Uma redenção colossal, grandiosa, impactante.
O Botafogo espantou o fantasma do Palmeiras com louvor quando mais se cobrava controle emocional do clube, que vinha de empates inesperados como mandante contra Criciúma, Cuiabá e Vitória, de um 0 a 0 contra um Galo sem torcida e com um jogador a menos na maior parte do tempo e da perda da liderança a poucas rodadas do final.
No duelo desta semana, quem perdeu o controle foi Marcos Rocha, veterano palmeirense que acabou expulso. A bola parada, uma arma poderosa dos times de Abel Ferreira, uma jogada que requer normalmente bastante atenção, foi vencida pelo Botafogo, que marcou seu primeiro e seu terceiro gols após escanteios. Não houve desespero nos minutos finais por parte dos botafoguenses, algo que se viu nesta Libertadores contra esse mesmo Palmeiras e contra o São Paulo também. Não houve motivo para tensão e confusão no final, como aconteceu recentemente contra o Galo de Deyverson, um gênio em entrar na mente dos adversários (conseguiu até penetrar na cabeça do bom técnico Artur Jorge). Mas esse embate na decisão da Libertadores contra o Atlético-MG, o jogo mais importante da história do Botafogo (vale título nobre inédito e vaga em dois Mundiais), estará de novo cercado de questão mental, de provocação, levará vantagem quem tiver mais controle emocional. O Glorioso é melhor no momento e por isso é favorito, tem bola para fazer um grande jogo e ser coroado de fato como o melhor da América, mas vai precisar ter a mesma cabeça fria que mostrou no Allianz Parque, quando não se abalou nem com a lesão do ótimo Bastos no início.
Os estudiosos dizem que há quatro aspectos fundamentais em uma equipe: físico, técnico, tático e psicológico. A sociedade discute cada vez mais esse último aspecto. Vemos cada vez mais atletas tendo problemas de saúde mental. Alisson, volante do São Paulo, revelou ter sofrido com uma depressão profunda que quase lhe custou a vida, mas ele conseguiu forças para se reinventar como jogador e virar um jogador fundamental no título do São Paulo na Copa do Brasil do ano passado. O esporte de alto rendimento castiga muito os atletas na parte física, mas também na parte psicológica. A pressão por resultados e por um desempenho de alto nível pode ser até bem mais dolorosa do que uma pancada em um jogo. E a solução por vezes não é tão simples. Trabalhar a cabeça dos jogadores é uma das grandes virtudes de muitos treinadores. Aparentemente, Artur Jorge conseguiu fazer isso no Botafogo. Sua coletiva de imprensa em que alegou ter “zerado” tudo após perder a liderança jogou ainda mais luz sobre a questão emocional.
Ele fez questão de garantir que moralmente a equipe estava em excelente estado, sem problema, trauma ou resquício do passado. Houve quem avaliasse isso como aquele famoso estágio de negação, pois, sobretudo no empate sem gols contra o Galo, vimos jogadores botafoguenses tendo reações fortes (Barbosa estava descontrolado e foi expulso, Luiz Henrique e Alex Telles também deram declarações um tanto quanto nervosas após a partida). Claro que o contexto era de empate com gosto de derrota, mas ali ficou a ideia de que o time estava mesmo saindo dos trilhos.
A resposta para esse momento foi, primeiro, um empate em casa contra o Vitória com um gol contra que saiu quase no fim da partida. E veio então o grande jogo do Botafogo no Campeonato Brasileiro, uma doce vingança da derrota para o Palmeiras em 2023. Tecnicamente, fisicamente e taticamente, este Botafogo de 2024 sempre impressionou. Faltava o mentalmente. Vencer com autoridade no gramado sintético do Allianz Parque o atual bicampeão brasileiro virou a chave, encheu o grupo de moral para a final da Libertadores, talvez tenha aumentado ainda mais o favoritismo do Glorioso diante do Galo.
Sábado (30) haverá no Botafogo uma tremenda euforia com o título ou uma enorme decepção com a perda de uma taça inédita. Mais uma vez, seja qual for o resultado da final, a questão mental será essencial para encarar na sequência o embalado Internacional no Beira-Rio (caso o Fogão perca e o Palmeiras bata o Cruzeiro, a liderança trocará de mãos de novo). Um empate contra o Colorado, matematicamente falando, é uma boa para o alvinegro, que estará mais desgastado, fisicamente e mentalmente, do que o Internacional. O melhor time (hoje esse é mesmo o Glorioso) nem sempre acaba campeão. Futebol tem suas surpresas. E os times campeões normalmente exibem grande força mental. O Botafogo de 2024 está perto de um título gigante ou até de dois. Tem a faca e o queijo na mão para erguer os dois troféus.
Com a cabeça no lugar, ficará tudo muito mais fácil, não tem para ninguém. É tempo de Botafogo, como diz uma faixa da torcida no estádio Nilton Santos.